Nesta terceira matéria da série especial BULLY XL, O CÃO BANIDO REINO UNIDO, o Media Pet traz uma explanação do provável conjunto de fatores que levaram à onda de ataques e ao consequente banimento da raça no Velho Mundo, analisando a tendência do mercado, os aspectos sociais, a abordagem da imprensa, a atuação de políticos e a mobilização de grupos organizados que contribuíram para este triste desfecho.
O pano de fundo
Com a crise sanitária do Covid-19, os longos períodos de confinamento e isolamento social fizeram com que muitos cidadãos do Reino Unido optassem por adquirir animais de estimação e o mercado britânico não conseguiu acompanhar o aumento da demanda por pets. Como resultado, houve um aumento absurdo na importação de animais, sobretudo de cães, a maioria proveniente de criadores duvidosos e produzida em condições de baixo bem-estar, totalmente fora dos padrões cinotécnicos minimamente necessários e aceitáveis.
De acordo com o Dispensário Popular para Animais Doentes (PDSA na sigla em inglês), em 2021 o Reino Unido contava com 9,6 milhões de cães, número que subiu para 11 milhões em 2023. Isso significa que, depois da pandemia, os britânicos passaram a ter 1,4 milhão (um milhão e quatrocentos mil) cães a mais.
“O Reino Unido não conseguiu atender à demanda. E então vimos um grande número de filhotes trazidos para o Reino Unido. Os cães criados fora, muitas vezes não eram criados com o mesmo padrão do Reino Unido, e vimos como eram criados em grande volume e em baixas condições de bem-estar, em particular no Leste Europeu, o que pode levar a problemas de comportamento, incluindo agressão”, disse Samantha Gaines, Chefe do Departamento de Ciência e Política de Animais de Companhia, da RSPCA.
O mercado e o canto da sereia
Segundo a Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade contra os Animais (RSPCA na sigla em inglês), que tem 200 anos de existência e é a maior e mais antiga instituição de caridade para o bem-estar animal do mundo, o preço médio por um filhote de cão subiu de £ 970, para £ 1.912. Um negócio que pode parecer bastante lucrativo aos olhos dos leigos e isso atraiu a atenção de muita gente que devia mais era ter passado longe da criação de cães.
Contrária à decisão do Governo, Gaines argumenta que a medida é paliativa e não resolve o real problema: “Quando olhamos para o que causa o comportamento agressivo, o que vemos é que se trata de uma mistura muito complexa de propriedade, criação, genética e experiência de vida do cão. Se você proibir uma raça de cachorro, não vemos pesquisas que sugiram que isso vá melhorar a segurança pública contra ataques”, disse a especialista.
Além disso, houve a popularização da raça a nível mundial. Com isso, o Bully XL passou a ser criado por quem não deveria nunca ser criador, e adquirido por pessoas que jamais poderiam ter um cão como este. Junte isso à alta demanda por cães da raça e à tendência do mercado por valorizar indivíduos cada vez mais extremados e teremos a descaracterização dos padrões oficiais da raça, tanto fenotípicos (as características físicas), quanto psicológicos e comportamentais.
Cruzas mal planejadas, falta de seleção e aprimoramento, inserções entre autênticos American Bullies e cães de grande porte (em geral, molossos) voltados para caça, guarda e proteção pessoal, como o Cane Corso, o Borboel e o Presa Canário, por exemplo, cães de temperamento muito quente e protetivo, logo, animais menos sociáveis, mais territorialistas e bastante reativos.
No afã de ganhar dinheiro, Ryan Birch queria se tornar criador e adquiriu um cão adulto, com o único objetivo de procriar e vender os filhotes. Ele pegou esse cão, com o qual ele não tinha vínculo algum e o levou para dentro de casa, para conviver com ele e a família, sem fazer a menor ideia da procedência genética ou da história de vida do animal. Se era um cão equilibrado ou traumatizado e reativo. Se poderia representar perigo para ele e para sua família. Uma semana após a aquisição, o cão matou a filha dele, a pequena Bella-Rae Birch, de apenas 17 meses. Uma verdadeira tragédia.
O problema é que, para os maus criadores, suas criações acabam se tornando um problema quando não dão o retorno financeiro esperado. Na ânsia por se livrarem do “problema”, eles vendem os animais, não orientam devidamente quem comprou, nem prestam a assistência necessária, um misto de desonestidade, oportunismo e, não raro, ignorância, pois muitos são leigos, marinheiros de primeira viagem e aventureiros irresponsáveis.
Não há problema em se criar e comercializar animais, contanto que se priorize o bem-estar e a dignidade deles e sigam-se todos os critérios veterinários, sanitários e técnicos para tal, o que muitos desses criadores não possuíam: zero aporte teórico; nenhum embasamento, sem projeto ou objetivo cinotécnico.
Muitos não condicionaram ou construíram vínculos com os cães que criavam, não estudaram sobre a raça ou sobre comportamento e psicologia canina, entendiam pouco ou quase nada de manejo ou sobre cuidados médicos, como se para criar cães bastasse dar ração e água, apenas. A experiência de vida do animal, desde o nascimento, influencia muito em seu temperamento e sua personalidade.
A culpa é de quem?
Incontestavelmente, os maiores culpados e responsáveis pelo banimento dos Bullies XL do Reino Unido são os tutores dos animais que protagonizaram os ataques. Ponto final. Isso é indiscutível, pois estamos falando de cães que pesam de 40 kg a 80 kg (às vezes até mais do que isso), que têm músculos aprimorados, ossatura densa e uma mordida muito poderosa. É o tipo de cão que, literalmente, leva o dono para passear e dificilmente será contido apenas com a força física caso saia de controle. É preciso ter autoridade e comando de voz sobre o animal, que de preferência deve ser minimamente treinado. Um cão desse porte requer que o proprietário se faça enxergar como líder.
Definitivamente, um Bully XL não é um cão para pessoas inexperientes, inconsequentes, desinformadas e irresponsáveis, que quando não mimam excessivamente seus cães até “estragá-los” e perderem o controle sobre eles, os submetem a maus tratos, desenvolvendo no animal determinados traumas e gatilhos que vão se manifestar em algum momento (geralmente com agressividade ou medo excessivos), e que ele vai carregar para o resto da vida.
Logo, não prepararam o cão para o convívio social, para a interação harmônica e saudável com humanos e outros cães. Não raro, esses criadores e tutores são atacados e mordidos por seus próprios cães.
Em parte, essa conjuntura que determinou os acontecimentos no Reino Unido não é muito diferente do que está ocorrendo hoje no Brasil. Existe, sim, um mercado extremamente poluído e vulgarizado no que se refere ao Pit monster, o nosso Bully XL, mas, ao menos, não se tem por aqui essa situação de ataques em massa com vítimas fatais recorrentes. Não ainda, e isso provavelmente se deve ao fato de que no Brasil dá-se muito valor ao cão monstruoso de temperamento dócil e equilibrado, inclusive enquanto padrão comportamental estabelecido pelas entidades para a raça.
Um prato cheio para o circo
Muitos podem se ofender com isso, mas o fato é: cães de grande potencial ofensivo não são para qualquer um. É muito comum ocorrerem incidentes com mordidas de cães de pequeno porte, mas esses casos nunca viram notícia. Via de regra, são animais que se tornaram reativos, possessivos e agressivos por terem sido mal criados, mal condicionados e manejados de forma errada. A diferença é que quando um Shitzu te morde, você não perde metade de um braço. Quando um Pinscher morde alguém, a pessoa não morre.
Quando os ataques envolvendo Bullies XL começaram a se tornar mais recorrentes, a imprensa passou a dar mais atenção e visibilidade para os casos. Vítimas de ataques passaram a aparecer com frequência na TV e programas de rádio. Todo e qualquer ataque envolvendo um cão de grande porte passou a ser atribído ao Bully XL. Existe, realmente, um problema envolvendo a raça no Reino Unido, mas esse problema foi distorcido e exacerbado pela abordagem dos maiores veículos de comunicação do Reino Unido, como o Daily News e o Mirror, com suas manchetes alarmantes e espalhafatosas, e do mundo, a exemplo da Fox News, que usou a foto de um Bulldog para ilustrar o que seria um Bully XL. Esse foi o nível de alienação propagado pela grande mídia, algo trágico e ridículo.
Manchetes e declarações se referindo aos incidentes e aos cães, sempre os adjetivando repetida e exageradamente, instalaram na sociedade um terror exacerbado. Conte uma mentira 1000 vezes no jornal e ela se tornará verdade no ideário coletivo. Chamadas do tipo: “Como se defender em um ataque de XL Bully: especialista em cães perigosos dá conselhos sobre o que fazer se você for atacado pela raça proibida”; “Ataque sangrento de Bully XL”; “Ataque de cão agressor Bully XL”; “Pai de cinco filhos é atacado até a morte por um Bully XL“; “Por que os cães XL Bully são ‘máquinas de matar’; “Cães assassinos que atacaram o herói, de 52 anos, até a morte enquanto ele protegia sua mãe idosa ‘atacaram outra mulher poucas semanas antes’, enquanto os vizinhos dizem que o horror foi ‘um acidente esperando para acontecer'”.
Esse próximo exemplo é o que podemos chamar de pérola. Uma declaração nada tendenciosa: “EXCLUSIVO – Por que mais pessoas morrerão a menos que o XL Bully seja PROIBIDO: Especialistas alertam que o cruzamento americano pode matar em 60 segundos e as mortes no Reino Unido aumentarão à medida que os criadores ‘criam monstros’ alterando o DNA dos animais para dar-lhes músculos aprimorados”. Pode parecer um parágrafo, mas esta é apenas a manchete de uma reportagem sobre o tema, publicada no Daily Mail, um dos mais influentes veículos de comunicação do Reino Unido.
Além disso, a mídia passou a dar mais destaque às tragédias, reprisando-as incessantemente e dando muito mais voz às vítimas, a políticos contrários à raça e a representantes de entidades anti-bully do que ao outro lado da balança, formado por profissionais veterinários, cinotécnicos, experientes criadores e especialistas em cinologia, comportamento e psicologia animal, todos se contrapondo ao banimento.
Essa cobertura espetaculosa não promoveu o justo debate sobre a questão junto à opinião pública e instalou um clima de pavor sobre a raça em uma parcela da sociedade, manipulando as pessoas e as impedindo de ter uma visão ampla e concisa da situação como um todo.
Muitos políticos, além do primeiro-ministro, Rishi Sunak, e do secretário do Meio Ambiente, Mark Spencer, levantaram suas vozes para militar em prol da causa anti-bully, aproveitando de forma oportuna e populista para surfar a onda do momento e ganhar visibilidade.
Entretanto, mesmo entre os conservadores, muitos políticos criticaram fortemente a forma como o governo lidou com a legislação de proibição e banimento da raça. O deputado conservador Sir Christopher Chope disse que a proibição foi uma das piores peças legislativas apresentadas pelo governo, descrevendo-a como uma reação instintiva às manchetes dos jornais.
“Estamos escolhendo uma raça específica em vez de fazer o que toda opinião informada pede, que é olhar para trás, para a própria legislação e legislar contra aqueles que permitiram que seus cães, de qualquer raça, saíssem do controle e atacassem pessoas. O problema não é o valentão XL, é a falta de propriedade responsável”, disse o parlamentar ao jornal The Independent.
Com o progressivo número de ataques a pessoas, as mortes decorrentes e a repercussão negativa da raça, surgiu a Bully Watch, uma entidade dedicada a registrar e contabilizar os casos e denúncias e divulgá-las na internet. A Bully Watch agiu contundentemente na campanha anti-Bully XL no Reino Unido, exercendo preesão spbre o governo.
Toda essa comoção criada gerou medo na sociedade, tirando o foco do verdadeiro problema: os maus tutores; a falta da posse responsável; o comércio clandestino; a falta de regulamentação e a ausência de uma política de fiscalização desse mercado.
Só que, para o governo, o problema já estava resolvido, pois, juntamente com a imprensa, criou a imagem de um monstro descontrolado, uma besta-fera vinda diretamente do inferno para matar pessoas, e com isso vendeu à população uma solução superficial, paliativa, mentirosa e burra, uma vez que não considerou a opinião dos diversos especialistas ligados à área cinotécnica e tão pouco atacou a brecha que permitirá, num futuro muito provável, que uma outra raça venha a ocupar o trágico pedestal em que hoje se encontra o Bully XL. O inimigo número um da sociedade britânica passou a ter nome e sobrenome: American Bully XL.